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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Universos Paralelos, Literatura e Cristianismo


ATENÇÃO! Se você é fã dos quadrinhos de Mike Carey ou nunca leu "Perelandra" de C. S. Lewis, talvez seja melhor ir ler outra coisa porque esse texto pode conter alguns "Spoilers".

Bom... E daí? Daí que ambos os casos contribuem com reflexões interessantes. Pra quem está familiarizado com literatura fantástica contemporânea o nome de Niel Gaiman se destaca, especialmente pela série de HQ Sandman (na minha opinião, juntamente com o Questão de Dennis O'Neil, uma das HQ's mais densas e interessantes já concebidas – encarem isso como dicas de leitura – vale à pena!). Numa das histórias de Sandman, chamada "Estação das Brumas" ocorre que um dos personagens é o chamado "Lúcifer", que se cansa de reger o inferno e resolve se mandar de lá e abrir um piano bar em Los Angeles chamado LUX. A idéia pegou e virou uma edição mensal à parte, dessa vez com histórias escritas por Mike Carey e publicadas pela editora Vertigo (mesma editora que lançou a controversa HQ Preacher e que parece ter um certo... digamos, "probleminha" com o conceito de Deus cristão – veja os outros títulos da editora e me avisem se eu estiver errado, mas são poucos que não passam essa impressão). Trata-se da HQ chamada LÚCIFER.

Pra começo de conversa a HQ tem algumas idéias beeeeem distantes do Cristianismo real. De fato, a visão de mundo exposta é pra lá de mitológica, assim como em seu antecessor SANDMAN, mas, ao contrário de Sandman, que é uma leitura mais leve, eu só aconselharia a leitura da HQ Lúcifer a cristãos maduros. O caso é que o Lúcifer da HQ, por uma série de casualidades, acaba criando um universo dele, contrastando com a criação do equivalente a "Deus" do gibi. A história se desenvolve até que o "Deus" resolve dar no pé e deixar outra pessoa no comando, uma garota chamada "Elaine", filha de Miguel Arcanjo. No gibi, os anjos chamam a Lúcifer de "irmão" e mesmo o "Deus" da história o chama de "Filho". Entre outros detalhes relevantes temos a ausência total, completa e absoluta de um Jesus ou algo metaforicamente equivalente.

Antes de prosseguir, é bom lembrar que a bíblia se refere a "serpente", principados e potestades, "príncipes do ar", anjos, demônios, serafins, "anciãos", diabos, "dragão", Satanás, anti-cristo, mas não fala ABSOLUTAMENTE NADA sobre o tal do Lúcifer, que, me parece, ser um mito construído historicamente para tentar personificar um dos inimigos de Deus como o primeiro ou mentor dos demais. Não é que o mito de Lúcifer não tenha uma certa coerência, afinal, pra se opor a um Deus que é causa de todas as coisas, o indivíduo teria que ser alguém criado por Deus - o que não compreendo é o motivo da aparente "glorificação" da figura e dos requintes literários atribuídos à sua personalidade, como no caso do Lúcifer de Mike Carey – não me parece sensato. Na verdade, é um despropósito se julgarmos que aquele que se opõe a Deus perde gradualmente qualquer atributo emanado de Deus, direta ou indiretamente, por ocasião do pecado - a literatura pinta o diabo como o "estiloso" Diabo de Milton; um rebelde e pensador libertário, como o fazia Lord Byron; um comerciante de almas buscando fechar negócio, como o Mefistófelis de Goethe; ou como um grande poder destruidor (no caso de algumas bandas de heavy metal) ou ainda como um malandrão bancando o esperto, como em alguns casos no folclore brasileiro. O que não entendo é porque até hoje o único diabo realmente coerente foi o "Não-Homem" de C.S. Lewis em Perelandra - uma completa aberração mesclando características psicológicas infantis mal resolvidas, psicopatia, paranóia e moral deturpada. O personagem é tão repelente que suas falas são como um buraco negro que engole qualquer coisa a seu alcance, choca e ao mesmo tempo tenta seduzir a quem lhe ouve a ser tão escroto quanto ele próprio – uma aberração perturbadora, como o é qualquer um que rejeite a Deus firmemente – numa escala exponencial, um inimigo de Deus de muitas eras atrás seria exatamente assim.

Perelandra é o segundo livro da "Trilogia Espacial" de C.S. Lewis e, meu favorito da série. A história gira em torno de Ransom – um filólogo que foi seqüestrado, no primeiro livro (Além do Planeta Silencioso), por um cientista fdp e seu comparsa e levado à força até o planeta Marte pra servir de sacrifício aos marcianos nativos - a história termina de modo TOTALMENTE DIFERENTE de todo e qualquer exemplo da literatura de ficção espacial com o qual eu tenha tido contato. Tanto que, no segundo livro, PERELANDRA, Ransom vai parar em Vênus com uma missão extraordinária: evitar que a nova criação, que agora povoava o planeta, caísse em pecado como aconteceu com a humanidade. A história tem diálogos sem precedentes e nos leva a pensar no que teria acontecido se a humanidade nunca tivesse caído em pecado - ou ainda, se isso seria realmente possível.

Em ambas as leituras somos levados a pensar nas possibilidades que Deus talvez tivesse de fazer criações diferentes da atual, ou paralelas à nossa. Parece coisa de Stephen Hawking, né? Universos paralelos, mundos povoados por vida inteligente para além do cosmos ou formas de existência fora do tempo... Esse é um dos temas que une ciência, literatura, mitologia, metafísica, teologia e lógica numa só discussão.

Uma das indagações que surge das páginas da HQ LÚCIFER é: o que levou Deus a uma configuração de universo onde o sofrimento se faz necessário? Porque não intervir pessoalmente diante de coisas que O enojam, como em circunstâncias de celebrações religiosas que incluíam sacrifícios humanos? Por que permitir obscenidades como o Holocausto? Afinal, o universo não poderia ser de outro modo? É claro que cada uma dessas questões tem uma série de respostas racionais possíveis dentro e fora da fé cristã. Poderíamos falar em teoria do caos, controle populacional, juízo final, lei moral, ou simplesmente alegar a possibilidade de salvação automática dos injustiçados... entretanto, moralmente algo dentro de nós ainda grita com os punhos ao ar esse mesmo sonoro "POR QUÊ?!" desde Jó até hoje. Esse é um ponto que eu gostaria de discutir baseado nessas obras literárias...

Creio que a resposta mais apropriada a tudo isso é dizer: Deus não podia fazer nada a respeito. Sim, ele continua sendo onipotente, mas a própria onipotência não pressupõe também que Ele poderia agir como não-onipotente?! Estou propondo um paradoxo bem possível – mesmo talvez não sendo uma explicação exata, encaixa. As variáveis que Deus calcula na direção do julgamento final são grandes demais pra questionarmos com alguma elegância o que Ele permite ou não que aconteça, mas o princípio da causalidade é uma realidade. Assim sendo, se as coisas caminham pra uma direção é porque as outras se tornaram impossíveis e/ou inviáveis. Um exemplo: pense num episódio do MacGyver: ele está preso e olha as ferramentas que tem ao redor e tenta escapar... e pegam ele. Ele tenta de novo de outro jeito... e torna ser pego... Tenta de outra jeito uma vez mais... e aí funciona!

Cada opção tentada limita a forma e a possibilidade de MacGyver escapar de seus algozes e o obriga o mudar o plano. Se Deus é coerente e realizou a criação a partir da razão, também teria o mesmo tipo de limitação. Alguns diriam: Mas, segundo a Bíblia, Deus não muda! (Tiago 1:17) Eu respondo com um exemplo: MacGyver deixou de ser MacGyver só por mudar de estratégia?

Pois bem. Observe a história bíblica: Antes da Lei, depois da Lei, os sacrifícios de animais, a Era dos Profetas, o Silêncio, a vinda do Messias e, agora, a Graça (que também, segundo a Bíblia, é mais uma fase entre outras antes do "juízo final"). Deus usou de estratégias distintas para lidar com o pecado ao longo da história da humanidade.

Se cada fase representar um esgotamento das tentativas anteriores de NOS CONVENCER do pecado, da Justiça e do Juízo (João 16:8), Deus pode muito bem nos olhar na cara e dizer: "Eu tentei tudo pra salvar a humanidade, mas alguns, ainda assim, não puderam/quiseram ser salvos!"

Todo mundo sabe que quando se esgotam as possibilidades não dá mais pra fazer nada. Como duas pessoas poderiam se casar por livre e espontânea vontade se uma delas sempre diz "não"? Pense nisso. Talvez Deus, em sua onipotência, não possa fazer algumas coisas. Não se trata de um contexto de contradição, é um paradoxo, como um erro cíclico no seu computador... não dá pra fazer mais nada, seria preciso "REPROGRAMAR".

Já no que diz respeito à possibilidade de universos paralelos distintos ou mundos sem pecado cabem 2 reflexões:

  1. A primeira, pode se basear no argumento anterior: assim como cada ação gradual de Deus limitaria a flexibilidade da criação daí pra diante, se Deus partisse de idéias ou formas diferentes para sua criação em outras circunstâncias, Deus poderia "sim" fazer mundos e universos distintos do nosso e com outras regras, mas me pergunto em que sentido. Podem facilmente haver universos sem vida, sem matéria, mundos povoados apenas por vegetais, mundos com vida microscópica, mundos com minerais com habilidade de calcular infinitesimalmente, etc... Mas em se tratando de mundos com livre arbítrio, a história é outra...
  2. *Supondo uma outra criação com seres inteligentes dotados de livre-arbítrio e com possibilidade de DESEJAR as possibilidades lógica de mundos diferentes do nosso caem muito. É onde entram as idéias de Lewis em Perelandra.

Em Perelandra, a criação não conhece o mal, então é extremamente difícil para Ransom explicar porque o mal é tão abominável e deve ser rejeitado – por estranho que seja, os argumentos do Não-Homem, embora fortes, não parecem muito mais atraentes à "Dama" (a Eva de Perelandra) já que ela ainda não sabe o que é o mal. Então cabe pensar: como diabos a "queda" aconteceu? Lewis traz uma variável importante na história: o tempo. Em Perelandra a tentação não aconteceu num dia mas em semanas! Imagine você ser fustigado insistentemente por alguém a fazer algo que você não deseja dia após dia! Não importam os argumentos, chega uma hora que você quer que o infeliz cale a maldita boca e aí acaba fazendo o que ele diz. Qualquer pai de família, ou quem tem um com irmão mais novo, ou já sofreu bullying na escola sabe disso. Talvez esse seja um dos motivos de Deus querer a nossa redenção – haveria uma sutil, porém real, coação para que as pessoas pecassem. 

O problema é: isso não eximiria a pessoa da culpa? Não exatamente. Em nenhum momento do diálogo de Eva com a serpente você vê Eva dizendo algo como: "Peraí que eu vou perguntar Deus o que Ele acha do que você está dizendo e conversamos nós 3 sobre isso". A escolha de Eva é real, mas o mal é como um vírus: não dá pra recuperar a inocência após perdê-la e, aparentemente, não há como reconhecer o mal adequadamente sem perder a pureza. Uma criança que tenha visto ou sofrido violência fica marcada para sempre por algo que nunca devia ter acontecido e aquele fato se incorpora em sua personalidade. Engraçado que Deus demora MUITO pra argumentar o que Ele tolera ou não depois da queda no Éden. A consciência é, antes da revelação, a única coisa com que os homens, afastados de Deus, contavam antes da Torah. "Deus não leva em conta o tempo da ignorância" (Atos 17:30) ganha um novo sentido nesse prisma. Você tem culpa de qualquer modo, mas Deus faz vistas grossas pra suas merdas enquanto você não sabe que diabos está fazendo - essa é, basicamente, a essência do conceito teológico de "Justificação".

Agora, em se tratando de que aparentemente não haja como reconhecer o mal sem perder a pureza é uma falácia sutil sob a lente da lógica: O mal é necessário para se opor ao bem e nos fazer ter ciência da diferença dos dois, mas isso não quer dizer que nós tenhamos que abraçá-lo! Ao argumentar que o mandamento de Deus tinha "intenções escusas" a serpente já se opôs a Deus em sua fala. Ou Deus ou a serpente estariam dizendo a verdade. Em termos lógicos, já era o suficiente pra Eva soltar um "ARREDA SATÃ". Então por que não o fez? Daí decorre que a única conclusão possível nesse cenário é que: Alguém tinha que se rebelar contra Deus, mas não necessariamente a humanidade. Logo, se há... houve ou haverá outras criações inteligentes e com livre-arbítrio pode SIM ser que tenham optado por não pecar, permanecendo em paz com Deus desde SEMPRE! Mas essa não é a única conclusão que salta aos olhos - se em outra criação também houvesse a queda também seria necessário um Cristo sacrificado nesse outro mundo possível.

O raciocínio não pára por aí: alguém poderia perguntar como Deus pode conhecer o mal sendo Ele o BEM? Repare: se eu, humano, tenho a idéia de perfeição impressa na minha cabeça, assim como a de Moral, e ambas dependem de um referencial absoluto – admitindo que um Criador de tudo seja real, a perfeição e a moral impressa em nós teria de ser um conceito programado em nós por Ele! Na verdade a idéia de perfeição só pode ser "perfeita" se a perfeição existir... compreendem? Se a sabedoria é uma virtude e a perfeição é a plenitude das virtudes, então quem ou o que personificasse a perfeição teria um conhecimento pleno de todas as coisas, certo? Então Deus conheceria também a imperfeição. É um grande intrincado lógico. Mas resta ainda uma ultima questão: é certo penalizar quem rejeita a Deus se o mal precisaria acontecer ao menos uma vez, em alguém, em um dos mundos possíveis?

Antes de ficar com peninha de Satanás acho que as pessoas deviam pensar: Por que alguém iria querer se rebelar contra alguém que, além de te criar, te sustém e te ama apesar de você não poder lhe oferecer nada em troca... além de um pouco de confiança. Se não quiserem minha opinião, parem de ler aqui.

...Eu responderia que essa é a maior e mais estúpida ingratidão possível.

Um comentário:

  1. ei cara depois de uma conferida neste anime d gray man.tchau

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