É uma tradição cristã, especialmente frequente entre os pentecostais, de justificar as ações ou argumentar durante uma discussão sobre fé usando citações bíblicas. Tirando a clássica situação citada por um certo telepregador em tempos mais honrosos: "texto sem contexto é pretexto pra heresia", é um hábito bastante interessante e de um formato existente mesmo no meio acadêmico: justificar argumentos baseado em fatos relatados por fontes históricas ou especializadas seguindo a nossa conhecida LEI DA AUTORIDADE: O mestre/especialista/guru/cientista/whatever disse/escreveu/cantou/filmou/editou tal coisa e ele é (ou parece ser) confiável, então deve ser verdade.
No entanto, há um problema em usarmos a Bíblia em um debate atualmente e, curiosamente, por causa da bendita "lei da autoridade"! Costumo chamar nossa era de pós-materialismo: por um lado muito rígida e incapaz de acreditar em qualquer coisa que não se possa pesar numa balança; por outro, algumas pessoas fugindo dessa primeira tendência (que vêm desde o finzinho do século XVIII), se vêem dispostas a acreditar em qualquer coisa que seja mal explicada e contraditória desde que tenha um fundo místico. O nosso probleminha com a "lei da autoridade" é que a Bíblia está entre esses pólos sem fazer parte de nenhum deles. A linguagem bíblica não pode ser chamada científica porque a ciência como conhecemos surge aproximadamente no século XVI, até então qualquer conhecimento tinha ainda certa aura mística e um exemplo clássico era a famosa alquimia.
Poucos cristãos sabem alguma coisa sobre os cânones bíblicos. De certa forma isso é bom. Eu mesmo não compreendo totalmente os critérios utilizados nos cânones e evito argumentação espiritual a princípio. São confusos, mesmo porque muitos dos homens que eu mesmo chamo de "homens de Deus" não entravam num consenso pleno sobre o que devia ficar dentro ou fora da Bíblia. A doutrina da inspiração divina da Bíblia poderia entrar em cheque se tomássemos por absoluto o que um ou outro desses estudiosos da Bíblia e/ou homens de Deus pensavam, então, seguindo a linha de raciocínio relutante que sempre tive, pergunto:
Dá pra justificar a fé na Bíblia sem pensar sobre os cânones?
Antes de mais nada, é preciso mencionar que os cânones bíblicos se alicerçam em 2 coisas: os textos sagrados judaicos da Torah, livros históricos, poéticos e escritos dos profetas (em suma, o antigo testamento ou Tanakh a que o apóstolo Paulo, estudioso da fé judaica, chamou "inspirados por Deus" em 2 Timóteo 3:16; e a história de Cristo e as cartas dos apóstolos, com destaque às cartas paulinas que o apóstolo Pedro defendeu em 2 Pedro 3:16 como sendo inspiradas por Deus. Isso por si só é um bom argumento teológico da unidade bíblica hoje, mas trataremos disso de outra forma antes de retomar a ideia da unidade lógica da Bíblia, mesmo porque, historicamente, heresias e evangelhos "disso e daquilo" apareciam à torto e a direito. Para unificar a igreja vários concílios foram realizados em diversas épocas para determinar o que era ou não escritura sagrada. Por essa razão vamos contornar esse problema indo em outra direção que acabará por mostrar que a coerência do cânon bíblico de forma mais simples.
Me parece possível crer na Bíblia sem mencionar os cânones, justificando a fé apenas no conteúdo bíblico. Me permitam explicar: a Bíblia, sendo analisada apenas pelo seu valor histórico é, reconhecidamente, uma relíquia arqueológica peculiar. Foi escrita num formato que é, em sua maior parte, mais similar a um documento como uma ata, um contrato ou uma carta a maior parte do tempo e é o registro documental compilado mais preciso/extenso da história de uma etnia. Mesmo historicamente falando ela é o documento ideologicamente mais coeso que eu conheço apesar de ter sido escrito por cerca de 40 pessoas de diferentes profissões, origens culturais e classes sociais ao longo de 1600 anos: um feito surpreendente para qualquer obra literária, principal razão de ser uma compilação de escritos e não um aglomerado de livros independentes. Isso você pode concluir buscando saber que tralha é essa chamada Bíblia e porque ela pode ser encontrada desde uma banca de jornal, até uma livraria, ou mesmo num quarto de motel. O motivo de ter se tornado tão popular a gente vê nas aulas de história no primeiro grau... pra quem não se lembra, ou não se importava com a escola na época, quando estudamos a Idade Média, a Reforma Protestante e a Contrarreforma estão ligadas intimamente à história da produção desse compêndio de livros chamado Bíblia.
A questão de os livros não estarem organizados cronologicamente na Bíblia pode confundir os leitores de primeira viagem e a razão de ser assim é que os manuscritos não foram traduzidos ou incorporados nas mesmas datas pela dificuldade de transporte e tradução dos originais, rigidamente controlados pela Igreja Romana durante a já citada Idade das Trevas - a cultura era uma exclusividade eclesiástica e a Igreja Romana tinha mais poder e riqueza que qualquer governo. Várias pessoas especulam que o livro em si não é a Palavra de Deus por ter sido supostamente alterada ao longo das eras por seus detentores e o Cristianismo (que é confundido de forma extremamente ignorante com a Igreja Romana, sendo que esta foi apenas uma de suas mais infelizes ramificações ao longo da história) seria apenas um instrumento descoberto pelo imperador romano Constantino I, e repetido por outros governantes, para controlar as massas. Esse argumento não faz sentido algum para quem fez um mínimo de esforço pra ler e entender a Bíblia do ponto de vista das épocas em que seus textos foram escritos, ignorando que os mínimos erros de gramática e má caligrafia dos escribas eram destruídos ou enterrados (já que se tratavam das escrituras SAGRADAS) além dos exemplares velhos e ilegíveis. Além disso, a história nunca fez uso da coerência lógica como elemento de dominação das ignorantes massas de manobra, pelo contrário! Sofismas faziam e ainda fazem o serviço sujo de controle social e todos sabemos que a omissão gera proliferação da ignorância: essa sim é a chave do domínio social. Então porque a Igreja Romana não alfabetizava as populações nem publicava os textos bíblicos nos idiomas locais? Por que as missas eram realizadas em latim, uma língua morta (e em alguns lugares ainda são), de modo que a liturgia se tornasse excessivamente mística, emotiva, pouco racional, incompreensível e geradora de histeria em massa? A resposta me parece óbvia: para que as pessoas não soubessem que DIABOS estava acontecendo! Aliás Lutero lutou pra que a fé cristã racional real pudesse ser acessível às pessoas e é essa herança protestante que devemos resgatar o quanto antes!
Outro ponto óbvio pra quem lê a Bíblia é que, ao contrário de muitos documentos históricos (e livros didáticos), a Bíblia não esconde os fracassos das pessoas e seus atos vis numa tentativa descarada de mudar a história com objetivos escusos, fossem elas pequenas ou importantes, de expoentes históricos ou populares, erros de heróis ou de transeuntes. A Bíblia cita personagens, lugares e datas que a arqueologia confirma terem existido e aqui no blog há muitas referências disso através de vídeos do Programa Evidências da Rede de TV Novo Tempo, programa apresentado pelo respeitado arqueólogo brasileiro Dr. Rodrigo Silva. A Bíblia critica a fé cega. Há historiadores que acreditam, inclusive, que o primeiro livro de filosofia da história seja Eclesiastes, o que deve ser uma dor de cabeça para os gregos já que calcula-se que Eclesiastes tenha sido escrito em 935 a.C.¹ Além disso, o relato da vida de Jesus de Nazaré presente no livro de Lucas foi registrado a partir de estudos de um não-apóstolo a respeito de quem se dizia ser Jesus de Nazaré compilando sua história para um não-cristão a quem o livro trata pela alcunha de Teófilo. Lucas é, logo de cara, o Evangelho mais ao estilo CSI de todos, escrito exclusivamente a partir de evidência forense - o que é interessante notar pra quem desconfia do relato das pessoas que realmente viveram com Cristo... sabe-se lá porque... Se eu quero saber como alguém é sem consultar a pessoa o normal é perguntar a alguém que a conhece ou conheceu de perto, mas se há quem prefira colocar um detetive no caso (o que eu também compreendo) quando não se crê que as testemunhas tenham visão clínica a respeito de quem falam ou quando há um conflito de interesses. Na verdade, é até uma atitude bastante séria, mas não exatamente respeitosa com testemunhas dispostas a morrer para perpetuar uma história que mudou suas vidas como o é o caso dos apóstolos e cristãos contemporâneos de Jesus. Ainda assim entendo que para algumas pessoas isso não seja sinceridade o bastante. Todavia, se estar disposto a morrer por algo não prova que você realmente está dizendo a verdade em seu entendimento sobre um assunto, o que prova?
Assim sendo, independente do motivo desses 66 livros estarem encadeados ele é suficientemente coeso e compatível com a lógica e a metafísica para explicar a realidade. Para saber em que baseio essa afirmação, veja a nossa matéria "Em que Crêem Cristãos Verdadeiros... E Porquê?"
Para maiores informações sobre a autenticidade histórica bíblica, e para encontrar evidências da existência do Jesus histórico leia:
O ponto seguinte de legitimação da Bíblia como Palavra de Deus é justamente o que pode parecer piração ou teoria conspiratória para alguns. Teologicamente, Gênesis precisa ser, ainda que parcialmente, literal. Permitam-me explicar: se Gênesis não é ao menos parcialmente literal:
a) ou Jesus veio pra Terra passear e morreu por acidente ou
b) Jesus veio para dar uma lição moral de como devemos evitar a violência nos tornando capachos humanos
Mas isso seria contraditório a seus ensinamentos e ao que ele mesmo confessava ser o propósito de sua vinda: Morrer e ressuscitar para quebrar o ciclo vicioso do pecado e seu domínio sobre o homem, trazendo o homem, se o homem desejar, de volta para a um relacionamento com seu Criador, pois é disso que a Bíblia trata desde o antigo testamento - aliás, a própria palavra "testamento" foi uma tradução livre do que era um termo mais próximo de "aliança" ou "contrato": o "contrato" entre Deus e o homem foi quebrado pela relação do homem com o capeta, ou seja, pelo pecado. Se o primeiro contrato foi quebrado, a solução que Deus encontrou foi fazer um novo que fosse melhor, com cláusulas especiais.
A morte de Cristo foi declarada pelo próprio Deus quando falava a Adão, Eva e à "serpente" (WTF) no Éden. O sacrifício de Abel foi melhor que o de Caim por ser um símbolo desse sacrifício que estaria por acontecer. E depois de os hebreus terem criado uma estrutura social complexa, 700 anos antes do nascimento de Cristo, já haviam predições de um messias por meio do profeta Isaías (entre outros). Para complicar ainda mais a conspiração, praticamente todas as religiões apresentam um filho de um deus supremo, fosse ele qual fosse, nascido de uma virgem, milagreiro, que morria enfrentando o mal e ressurgia após 3 dias. Alguns chamam de coincidência, mas se levarmos a sério a ideia de inconsciente coletivo essa "coincidência" toma proporções proféticas e as pessoas que disseminaram essa ideia passam de paranóicos para testemunhas do plano de Deus... Embora em nosso cotidiano materialista, mais que nunca, depende-se da fé para acreditar. Sendo Jesus figura histórica que se proclamava descaradamente "filho de Deus" só nos resta crer ou não em quem ele dizia ser. (Leia João 5:17-18)
Outro aspecto importante ignorado é que a Bíblia traz a moral sobre o ponto de vista do fraco, de quem perde e sofre - daí toda a beleza de poder ler as páginas inspiradas por um Deus que sabe a diferença entre ser onipotente e sentir o sofrimento que é a vida. Um filho de deus que se sacrifica é uma ideia comum. Um filho de Deus que se sacrifica por amar a quem o odeia é uma ideia absurda para a maioria dos religiosos não-cristãos ou mesmo para uma pessoa comum respeitável. Um outros aspecto interessante é justamente o fato de que quase todas as religiões pregam obediência, respeito ao próximo e tem seus rituais como um modo de tentar alcançar uma graça ou se tornar algo melhor. O Cristianismo, diante dessa tentativa malandra diz, parafraseando Jesus: "Ninguém há bom, senão um, que é Deus." Lucas 18:19. Não importa o que você faça, nada pode te salvar. Seus atos podem ser os melhores e sua inteligência superior que você não se tornará bom, santo ou divino. Pela fé cristã, o melhor dos homens é digno de "queimar pra sempre no inferno". Então você pergunta, "admitindo que você esteja certo, não existe salvação". Exato!
Nada que um humano faça de si mesmo pode salvá-lo! O pecado separou a todos de Deus (Romanos 3:23) que é a fonte de todo bem, estar separado dele normalmente é visto como estar num lugar à parte (inferno), mas se analisado corretamente parecerá mais um estado, uma situação, uma condição e não (apenas) um local. Perfeição não comunga com imperfeição. Logo, se estar longe de Deus é estar longe do bem, então só resta a ausência do bem, a saber, o mal e, assim sendo, o sofrimento. Então onde está a salvação? Em aceitar que Cristo se sacrificou como dando um calote nas regras do universo!
Se algum dos leitores do Proibido Pensar tiver a oportunidade de assistir a um anime chamado Full Metal Alchemyst vai se surpreender em como um desenho japonês pode ser tão, metaforicamente, cristão! Na história, há algo que define a realidade e é chamado "Lei da Troca Equivalente" que consiste basicamente no que a maioria de nós chama de "lei da causa e efeito", e que os orientais chamam de "karma" - toda ação implica uma reação igual e oposta, ou "Nada pode ser obtido sem uma espécie de sacrifício". É preciso oferecer algo em troca de valor equivalente. A ideia logo nos últimos episódios é que se você doa algo e recebe outra coisa não há uma doação real e sim uma troca. Esse equilíbrio de causa e efeito é como terminar um jogo no zero a zero e os personagens querem mudar essa realidade pra que a pessoa possa receber algo sem ter que pagar por isso. Senhoras e senhores, isso se chama a Graça!
Não merecemos nem podemos ser salvos se somos naturalmente pecadores, portanto maus, por estarmos afastados de Deus, o que por si só pode gerar o que conhecemos como mal (erroneamente interpretado apenas como punição quando na verdade é a única consequência possível de estarmos longe de Deus). O que Deus faz? Quebra as próprias regras de causa e efeito que norteiam o universo se tornando humano e, por ser Deus, logo, perfeito; e ao mesmo tempo humano Deus dá um calote em si mesmo "apertando meia lua pra trás e x bolinha" pra poder nos livrar do mal! Entendem a genialidade disso? Haja visto que o mal era inevitável consequência da liberdade essa era a única possibilidade de consertar as coisas ("vide Por Que Todo Mal é Necessário?"). Uma vez feito isso resta a pessoa aceitar o "contrato" com Cristo. Uma vez que uma pessoa aceite as condições o que Jesus nos diz ao mandar evangelizar é, parafraseando o filme "A Corrente do Bem": passe adiante. Leve o bem ao próximo, o que na verdade é "leve-me (Deus) ao seu próximo".
É disso que a Bíblia trata: fatos - sejam eles históricos ou espirituais/metafísicos, não se poderia esperar menos do único texto sagrado peneirado pela busca da autenticidade histórica com um credo regido por aforismas lógicos absolutistas sendo o Cristianismo a única fé que se deu ao trabalho de estudar a si própria em busca de inconsistências, ou nunca notaram que não existe uma teologia hindu, muçulmana, tupi, etc? As religiões demonstram textos sapienciais mas não realizaram nenhuma empreitada tão ampla e criteriosa quanto a cristã reformada pós-Lutero no que diz respeito a autenticidade histórica e quando o fazem não há validação lógica seguindo o princípio da não contradição porque... Nunca houve esse objetivo, por mais intelectualizado que fosse o credo! Importante lembrar que para os primeiros cristãos isso tudo era factual, palpável e evidente e após a Reforma Protestante essas noções foram confirmadas. As divergências teológicas que temos hoje são um atraso e uma vergonha dadas as soluções implementadas para as questões teológicas dadas na Reforma Protestante (e eu particularmente acredito que estamos precisando de uma nova Reforma hoje para nos lembrarmos disso). Assim, sendo Deus a verdade e, consequentemente, a lógica, a Bíblia ou é a Palavra de Deus ou é a Palavra de Deus. Ninguém perfeitamente racional acredita em coincidências e se tudo tem uma explicação, essa é uma das mais racionais para afirmar e reiterar que a Bíblia é a Palavra de Deus.
Referências:
¹ - http://oapocalipse.wordpress.com/2009/08/14/eclesiastes-um-livro-escrito-debaixo-do-sol
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alquimia
http://pt.wikipedia.org/wiki/B%C3%ADblia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Contra-Reforma
http://pt.wikipedia.org/wiki/Constantino_I
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cristianismo
http://pt.wikipedia.org/wiki/Gra%C3%A7a
http://pt.wikipedia.org/wiki/Princ%C3%ADpio_da_n%C3%A3o_contradi%C3%A7%C3%A3o
http://pt.wikipedia.org/wiki/Reforma_Protestante
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tor%C3%A1
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tanakh
http://www.skepdic.com/brazil/karma.html
Parabéns pelo texto e pelo Blog!
ResponderExcluirQue Deus os abençoe!