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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Anarquismo Cristão ☑


"Uma idéia atrai outras semelhantes. A idéia se expande. A idéia se transforma em uma instituição..."
Fala do personagem Top Dollar, extraída do filme "O Corvo", de 1994.


Segundo o dicionário Aurélio, ANARQUISMO é:

1. Teoria política fundada na convicção de que todas as formas de governo interferem injustamente na liberdade individual, e que preconiza a substituição do Estado pela cooperação de grupos associados.

2. Resistência ou agressão à ordem estabelecida.

3. Os anarquistas ou as organizações anarquistas.


Seriam o Anarquismo e o Cristianismo compatíveis? Penso que sim. Há uma certa corrente ideológica conhecida como Anarquismo Cristão. Alguns poderiam conjecturar que todo governo é instituído por Deus baseado em Romanos 13:1,2, mas tenho minhas dúvidas. Primeiramente porque o termo usado não é "governo" e sim "autoridade". Segundo, se toda autoridade vem de Deus a mesma deve estar moralmente de acordo com Deus e, se não está, não deve ser procedente de Deus. Mesmo sabendo que Deus usa o mal, ele não o gera e o exemplo moral deixado por Cristo é o Norte conduz o cristão a uma série de condutas que visa nos aproximar de Deus sendo benéfica para a sociedade, em última análise.

"A primeira cidade foi uma criação de Caim (Gn.4.17), enquanto que Seth e sua geração vivia em tendas. A criação de cidades exigia antes de tudo, a demarcação de território fértil para cultivo renovável do solo (exigindo com isso uma técnica agrícola – lembrando que Caim foi agricultor) e alimentação dos animais, tal demarcação exigia a construção de muralhas, exército, armas para a defesa do território. A guerra nasce com a origem das cidades, na defesa em que seus moradores fazem de seus territórios contra invasões, nascendo daí a noção de povo, língua, religião e raça própria, de uniformização da cultura. Com o aumento da população se diminui o espaço por habitante, surge a necessidade de expandir territórios – ocasião para uma nova guerra, dentro e fora do espaço urbano, origem da criminalidade e das campanhas militares (que na época era oriunda da posse ilegal de terras, fonte de toda a riqueza). O bandido é o soldado que luta contra o seu próprio país ou ainda, o soldado é o bandido que luta contra o país dos outros, nesse aspecto, ambos são moralmente idênticos, e se condenamos a ação do bandido, devemos condenar também a ação do soldado." (SANTANA, 2007)

Extraído de:

Esta citação já seria o suficiente para ao menos nos fazer refletir mas, como não é bom ter outras pessoas pensando no meu lugar, quero começar uma argumentação minha a partir da exigência do povo de Israel por um rei nos tempos do Profeta Samuel. Para quem por acaso não conhece a história, vou resumir:

O povo de Israel não possuía rei desde a chegada em Canaã, tendo líderes apenas em casos de extrema necessidade, como em ocasiões de guerra. Estes líderes nem eram eleitos pelo povo nem obtinham poder por herança familiar (embora alguns esperassem que assim fosse, como se nota nos primeiros versículos de 1 Samuel 8). A escolha era totalmente aleatória do ponto de vista humano e feita por Deus como é explícito nos livros de Josué, Juízes e 1 Samuel (dos quais Samuel foi o último). Este já é um motivo forte o bastante para notarmos que Deus é o patrão. A escolha era feita de modo que alguém fosse um mediador entre Deus e o povo. Sem manipulação ou falha humana. Se Deus é O Rei, não deveria haver rei entre os homens. Desde que você creia em Deus, claro. Assim sendo...

1 - O povo pede um rei (1 Samuel 8)
2 - Deus fica "P" da vida (1 Samuel 8:7: “Não foi a você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram como rei.)
3 - Deus diz o que vai NECESSARIAMENTE ACONTECER DE RUIM se eles se tornarem um reinado (1 Samuel 8:11-20).
4 - Os imbecis continuam querendo um rei e Deus diz algo que hoje soaria como: "Ok, mas depois que vocês se ferrarem legal, não digam que eu não avisei!" (1 Samuel 8:19-22)
5 - Israel se ferrou... várias vezes... por causa de reis ruins! Os relatos disso estão de 1 Samuel 9 até o Novo Testamento... Quem quiser ver os exemplos é só ler o que acontece depois disso na Bíblia.

Talvez não seja de conhecimento geral, mas no meio intelectual a história aponta inúmeros cristãos anti-Estado que podem, neste sentido, ser encarados como "anarquistas", entre eles Tolstói, Jacques Ellul e Kierkegaard, para citar alguns famosos.


Alguns acusam que sistemas anárquicos são intrinsecamente impraticáveis. Eu particularmente acho que há algo de verdade na acusação se a compreensão da mesma for que "o desgoverno não pode governar", mas este texto não é sobre isso. Uma analogia que nos dará alguma luz sobre o tema pode ser encontrada ao analisar algumas sociedades indígenas primitivas e seu modo de organização, como era o caso dos Guayaki, estudados pelo antropólogo Pierre Clastres: boa parte das sociedades primitivas, das quais creio serem as indígenas o melhor exemplo neste tópico, são tipicamente anarquistas e toda a hierarquia é meramente funcional. Elas se organizavam basicamente como: guerreiros e caçadores (que, na verdade, eram a mesma coisa), líderes (por habilidade inata ou empossados por necessidade ante circunstâncias adversas), anciãos e conselheiros (que também eram a mesma coisa), etc. Todos não passavam de peças funcionais quando era necessário que assim fosse. Portanto, a anarquia, na prática, não mata nem a autoridade, nem a organização e nem (pasme) a hierarquia! O que ela mata é o poder totalitário. Olhando por esse prisma, a anarquia é mais desejável que a própria democracia!


Sob o aspecto da polarização política, inclusive, a prática antarquista é mais necessária hoje do que foi no passado haja vista a tendência cada vez maior de governos e empresas em catalogar pessoas como números, invadir sua privacidade através de meios eletrônicos, entorpecer seu raciocínio com pornografia, redes sociais, TV, música ruim e excesso de entretenimento de baixa qualidade (dentre os quais reality show e horários políticos, apesar de o segundo ser realmente muito mais divertido que o primeiro e bem mais ridículo). Lembremo-nos que o Império Romano (dentre muitos outros) ruiu ao se tornar próspero e hedonista num grau análogo ao de nossos dias desde a nobreza até o povo, das orgias dos imperadores ao pão e circo da plebe. Quando uma organização rui por fraquezas como essas só restam a opressão totalitária ou o caos carregado pelas mãos armadas de terceiros, e nada disso é a anarquia.


Curiosamente, o termo "anarquia" e seus derivados vem seguido de uma série de interpretações indignas (exceto talvez o próprio termo "anarquismo" por vir carregado de uma bagagem intelectual e histórica do "movimento antarquista" anti-Estado, pouco conhecido por sinal). Quase sempre, para os ouvidos e mentes de qualquer um que nunca se deu ao trabalho de ler alguma coisa séria sobre o pensamento anarquista, como por exemplo, os escritos de Malatesta (à esquerda) ou Rothbard (à direita), a ideia de que é possível viver sem a presença de um Estado soa como uma galhofada. Parte disto me parece culpa do movimento punk inglês e de sua cartunesca popularização por bandas adolescentes (na época) como o Sex Pistols. Sua avacalhação chamou mais atenção para a conduta rebelde dos adolescentes setentistas que para a causa antarquista em si, mas não se pode culpá-los: adolescentes em sua maioria sempre são influenciáveis, raivosos e superficiais, até hoje o termo inglês "punk" é sinônimo de rufião ou encrenqueiro. Portanto, se quiser ter uma conversa inteligente evite falar com adolescentes de ego grande ou com os adultos que eles se tornarão (boa parte das vezes) - costumam ser soberbos demais. Mais fácil conversar com uma criança, tipo o Calvin.



Sem mais devaneios, o dicionário Aurélio também define "anarquia" como:

1. Falta de governo ou de outra autoridade capaz de manter o equilíbrio da estrutura política, social, econômica, etc.
2. Confusão ou desordem gerada por essa situação.
3. Negação do princípio da autoridade.
4. Estrutura social em que não se exerce qualquer forma de coação sobre o indivíduo.
5. P.ext. Ausência de comando ou de regras em qualquer esfera de atividade ou organização.
6. Qualquer organização, instituição, sociedade, etc., carecente de autoridade e de normas.
7. Desordem; confusão; baralhada.
8. Desordem, desarrumação, bagunça.
9. Desmoralização, desrespeito, avacalhação.

Um fenômeno parecido ocorre nos termos derivados da palavra negro, como é o caso de "denegrir". Os preconceitos de uma sociedade ficam aparentes mesmo em sua língua desviando uma palavra de seu significado objetivo para um significado emocional ou simbólico (o que nem sempre é bom, embora possa ser tolerável e as pessoas de hoje exagerem um pouco a suposta importância disso). Um livro interessante sobre este fenômeno é "Preconceito Linguísticodo brasileiro Marcos Bagno. Recomendo para aqueles que querem entender mais sobre esse tema e se aventurar no assunto. Contanto que não o levem muito à sério.


Um exemplo interessante de como o anarquismo ainda é válido em subsistemas sociais é o caso de Summerhill, escola fundada pelo escocês Alexander Neill na Inglaterra que tinha uma organização anarquista: 

As decisões para as questões de convivência eram tomadas em grupo numa assembléia presidida por qualquer membro alto o bastante para chamar atenção para si sem ter de ser sempre o mesmo; a voz de todos tinha o mesmo peso ao debater questões comuns e nada se decidia até se chegar num consenso não-forçado. As disciplinas eram opcionais, podendo cada um se dedicar a aquilo que lhe despertava a curiosidade e aquilo em que fosse melhor. Quando um conjunto de regras se tornava grande demais para ser lembrado de cor as regras eram todas anuladas e começavam tudo outra vez (mas, neste ponto, a maioria das regras sob consenso já era obedecida por puro hábito). Ademais, o modelo de auto-governança da escola era praticamente um agorismo e não uma democracia. Quem não iria querer uma escola assim? Aliás: quem não iria querer uma sociedade assim?

Ao contrário do socialismo e do comunismo, este o modelo de convivência é praticado desde sociedades tribais até escolas e, pasme, dentro de outros sistemas de governo sem, no entanto, gerar conflito, revolução armada ou o que quer que seja! Um exemplo clássico é o dos quackers nos Estados Unidos, cristãos anarquistas que negam a autoridade do Estado e, no entanto, vivem dentro do território do Estado. Particularidades advindas da Constituição Americana à parte, qualquer cidade pequena de interior onde o governo seja irrisório também já é anarquista em seu funcionamento. Acompanhe meu raciocínio: você já vive a maior parte da sua vida sem sequer pensar no que é o governo, como funciona ou se de fato existe. Mas então por que as vertentes de governança derivadas do anarquismo, sendo tanto existentes quanto mais simples e naturais que existência do Estado, não são levados à sério nem são adotadas na vida real a nível macro, nacional, por exemplo?


Primeiro: Num sistema anarquista não haveriam nações, e sim lugares nomeados.

Segundo: Uma economia baseada em recursos e sustentabilidade com informação descentralizada e distribuída seria necessária para a existência de um sistema amplamente anárquico. Aliás, se a sociedade quisesse implementar um modelo econômico compatível com a informação descentralizada e distribuída teria que rejeitar nossa clássica economia bancária sob controle estatal. Em outras palavras: o Estado não poderia controlar a circulação de moeda nem interferir sobre a economia.


Estamos tão acostumados com "farinha pouca, meu quinhão primeiro" que é difícil até mesmo pensar em outros modelos econômicos quando sua mente foi condicionada a pensar que o modelo bancário sob controle do governo é o único/melhor: fomos criados nesse sistema! E, como se mostra na frase inicial dessa matéria: uma idéia se torna uma instituição. E o que é uma instituição? Eu definiria, baseado no que mostra ser na prática: um sistema que se torna um tipo de organismo vivo e irracional que, com o tempo, torna-se estagnado e indiferente à realidade social onde se faz presente, cujo único objetivo é continuar a própria existência em detrimento de outras organizações e indivíduos - sendo seus adeptos pouco ou de nenhuma forma críticos em relação à sua utilidade mal podendo definir a origem da ideia sob a qual se alicerça sua instituição. É assim com governos, empresas, partidos políticos e todo o resto. O mais lamentável é que algumas vertentes (igrejas) do Cristianismo também tenham se tornado instituições neste dito sentido.
Por que, afinal, precisamos de governos ou instituições então?


Há evidências de que as instituições suprem a falta de proteção paterna e materna cujos resquícios psicológicos permanecem na vida adulta de homens e mulheres imaturos (desde Freud) sob a forma do pensamento: "outra pessoa deve resolver meus problemas e não eu". Existe ainda uma ligação entre como se estrutura uma instituição e o "comportamento de manada" já que era vantajoso aos nossos ancestrais selvagens permanecer em conjunto de modo a confundir predadores e facilitar a caça na natureza: respectivamente, comportamento de cardume e matilha.

Hoje, com menos contato com os perigos da natureza, nossa proximidade tornou nossas relações farpadas com noções distorcidas como "proteção estatal" e corporações que, por meio de oligarquias alicerçadas no capital, desfavorece a maioria e se afirma como o melhor dos sistemas de organização social, superior a todos os outros sistemas possíveis por lá sabe Deus que motivo (muitas corporações tem mais poder que governos, inclusive). Meu palpite é que uma exacerbação das farpas dos pequenos relacionamentos é ampliada a nível institucional - assim como quando o governo desconta sua ira raiva num "inocente" por não conseguir controlar a mente do "inocente". Mas ainda não é isso que torna a sociedade dita "civilizada" e estatista algo imoral: o que a torna imoral é o fato dela se impôr, engolindo e digerindo outras formas de organização social menores sem permitir a oportunidade de secessão (sair desse grande sistema viciado, caso desejássemos). Todos os sistemas de governo apresentam este elemento coercitivo compulsório em maior ou menor grau.


Até agora Deus foi o único candidato dentre todos que nos ofereceu liberdade, até mesmo de secessão... Talvez porque, essencialmente, o livre-arbítrio real seja de fato anárquico.


Para saber mais sobre Anarquismo e Anarquismo Cristão, leia:


À Esquerda

Malatesta Textos Escolhidos (essa compilação virou raridade, tente achar numa biblioteca ou sebo).


À Direita

A Anatomia do Estado, de Murray Rothbard

➡Nosso Inimigo, O Estado, de Albert J. Nock.

➡Democracia, O Deus que Falhou, de Hans Hermann Hoppe.

Anarquismo Cristão


Dica de filme sobre o tema: O Grande Debate, com Denzel Washington. Prestem atenção especial abaixo neste último argumento do filme:

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