Apesar de estar
na série "Paradoxos Bíblicos" o tema de hoje não é exatamente um
paradoxo... Na verdade, até é dependendo de qual tradução bíblica você tem
em mãos.
Vamos ao ponto: é
de conhecimento geral que há uma enormidade de traduções da Bíblia: NVI, VIVA,
Edições Paulinas, ARA, ARC, ARF, NTLH, Novo Mundo, Bíblia de Jerusalém, etc.
Isso apenas pra falar de algumas das traduções em Português.
Não pretendo me deter em demonstrações de diferenças
nas traduções porque isso é algo óbvio, esperado e, até certo ponto, desejável.
Não me entendam mal, qualquer pessoa que tenha conhecimento de mais de um
idioma sabe que existem palavras que não têm equivalente em outros idiomas.
Alguns exemplos que você com certeza já ouviu: os esquimós tem 8 palavras
diferentes pra "neve", português é o único idioma que possui a
palavra "saudade" e os gregos tem 4 palavras diferentes pra
"amor".
Palavras nos ajudam a pensar porque descrevem o que
queremos dizer, mas há algo engraçado com sinônimos: nem todos têm, de fato, o
mesmo significado exato, por isso às vezes, quando esquecemos a palavra exata
que queríamos usar e alguém fala um sinônimo dá aquela sensação de "serve,
mas não era bem isso que eu queria dizer". Que dizer então da pontuação,
que nem existia antes do século XVI e tem o poder de mudar o sentido inteiro de
uma frase!
Com a Bíblia acontece algo parecido, o problema é que
isso acontece mesmo em pontos doutrinários considerados importantes, como Lucas
23:43 onde uma vírgula muda o sentido de
toda a frase e cria uma noção quase espírita de vida após a morte:
"Respondeu-lhe Jesus (ao
ladrão arrependido): Em verdade te digo hoje estarás comigo no paraíso."
Lucas 23:43
Que alguns grafam assim...
"Respondeu-lhe Jesus (ao
ladrão arrependido): Em verdade te digo hoje, estarás comigo no paraíso."
Lucas 23:43
Ponto do paradoxo: a pontuação não existia até quase
final da Idade Média (séculos XVI e XVII)*, logo, a tradução mais correta é a
primeira. Então por que nossas igrejas não ensinam apenas a promessa da
ressurreição para juízo de salvação ou condenação mas nos alegam que a morte é
seguida de recompensa, para bem ou para mal, e imediata?
Existem outros casos estranhos, por exemplo, na
tradução ARC o termo "gordura" de Isaías 10:27 consta traduzido como
"unção" na NVI, alterando consideravelmente o sentido da frase.
Quem nunca pegou uma Bíblia de uma tradução diferente
da que estava acostumado, olhou um versículo chave e pensou “não era bem isso
que eu estava procurando”, atire a primeira Bíblia!
Além disso, apenas para citar como exemplo de fácil constatação: pegue uma Bíblia das traduções de Almeida e compare com a Bíblia Viva e vai notar vários versículos fora da estrutura: ora adiantando, ora retardando o texto. Isso em si não é uma coisa tão grave assim, já que a Bíblia foi dividida em versículos em 1551, sabia?
O texto bíblico, em si, como qualquer outro, precisa
de contexto pra ser compreensível. A divisão em versículos só se deu pra ajudar
a encontrar textos e estudar a bíblia com mais facilidade, mas pode dificultar
o entendimento isolando alguns textos de seus contextos.
A doutrina da imortalidade da alma do homem em
comparação com a mortalidade da alma animal em Eclesiastes 3:21, por exemplo,
é, pelo contexto, uma pergunta, mas é ensinado como se fosse uma afirmação pela
maior parte da Cristandade (vá saber se não foi por má pontuação em traduções
anteriores).
Sendo assim, diferenças doutrinárias entre grupos
cristãos apareceram a torto e a direito. Qual seguir nesses casos? Aliás, como
confiar na versão da Bíblia que você está lendo? Dá pra confiar que não
traduziram uma palavra-chave errado em um texto importante? Um exemplo: não há
consenso entre os cristãos se devemos ou não nos abster de bebidas alcoólicas
baseado nos termos hebraico, aramaico e grego serem ou não designativos de
vinho alcoólico, o que eu particularmente considero ser pedir demais pro
público leigo se decidir, seja nesse ou em qualquer outro ponto doutrinário. A
análise de contexto não seria mais que suficiente ante essas perdas
semânticas?
Como se não bastasse, e se as várias traduções bíblicas apresentarem discrepâncias nas traduções de tempos verbais? Me assustei ao comparar o texto de Lucas 24:27 numa tradução ACF e numa NVI. Comparem:
ACF: E, começando por Moisés, e por
todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em
todas as Escrituras.
NVI: E começando por Moisés e todos os
profetas, explicou-lhes o que constava a respeito dele em
todas as Escrituras.
Reconheço que, nesse caso não há prejuízo de contexto, afinal temos ambos os casos no tempo passado (no primeiro caso trata-se do pretérito imperfeito do indicativo e, no segundo, do pretérito perfeito) mas minha mente voou no momento ao imaginar: seria possível que haja algum caso de mudança de tempo verbal entre traduções diferentes? Afinal, é provável que haja OUTROS MAIS!
Alguém se arrisca a dizer que não existe diferença
real no uso de um “foi” no lugar de um “será” numa
frase? Para ajudar nesses casos deixo para vocês um alerta:
“Tempos verbais em hebraico denotam ação, não do
tempo: o tempo perfeito denota ação concluída, e o imperfeito denota ação
incompleta. Assim, o pretérito imperfeito pode ser traduzido como presente ou
futuro, e isso pode causar problemas na tradução. A dificuldade é que para a
mente hebraica, mesmo algo concluído pode ser no futuro: "Por exemplo, eu
posso dizer "meu pai me ensinou sobre a vida", que é escrito no
pretérito. Enquanto meu pai me ensinou há muitos anos, nós vemos isto como
tempo passado e na mente hebraica é uma ação concluída. Mas, na mente hebraica
esta ação concluída existe no passado, presente e no futuro."¹
Detalhes técnicos de traduções e doutrinas dúbias ante um mesmo texto são difíceis de digerir assim como paradoxos, pois num mesmo texto, ainda que com ligeiras alterações, deveria-se sempre manter uma interpretação única: a do que o autor quis dizer, ao invés de dar margem para múltiplas interpretações.
O que me consola nessas horas é o
texto de Tiago 1:27:
"Para Deus, o Pai, a
religião verdadeira é esta: Ajudar os órfãos e viúvas nas suas aflições e não
se manchar com as coisas más deste mundo."
Eu digo "amém" a
isso!
Fontes:
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