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quinta-feira, 18 de julho de 2019

O Que Há de Errado com o Mundo?


Por incrível que pareça, há um livro do autor Chesterton que tem um título homônimo ao dessa matéria mas que não tem relação nenhuma com o conteúdo que você lerá abaixo!
A matéria abaixo em questão é baseada em citações do livro "Como Ser Um Conservador", do filósofo britânico Roger Scruton.

O QUE HÁ DE ERRADO COM O MUNDO?
Texto base: Lucas 10:5-37

Parte I - Tolerância
(...) A conquista da civilização cristã é ter dotado as instituições de autoridade religiosa sem exigir-lhes uma obediência religiosa, em oposição à secular.
Como isso foi feito? Cristo, chamado para explicar a lei e como devemos a ela aderir, disse o seguinte: "Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes." Ao reduzir os mandamentos a esses dois comandos, Cristo estava seguindo uma antiga tradição rabínica que verificamos na Torá, especialmente no livro de Levítico e nos ensinamentos do contemporâneo de Cristo, o rabino Hilel. A declaração de Cristo sobre a lei seria adotada como ortodoxia por seus seguidores, que, por isso, viram a antiga lei de proibições como uma dedução dos dois mandamentos mais importantes, que não adotavam a forma de proibições, mas de deveres, e que nada prescreviam, especificamente, no mundo dos assuntos humanos. Os dois deveres nos ordenam a olhar o mundo com uma perspectiva de amar o que encontramos, e devemos obedecer-lhes interiormente, antes que possam ser transformados em atos. 
(...)
A história do Bom Samaritano, apresentada em resposta à pergunta "Quem é o meu próximo?", nos mostra que o "amor ao próximo", como dever religioso, não exige a imposição de uma obediência religiosa e não é uma forma de irmandade. Destina-se tanto ao desconhecido quanto ao amigo. Amamos ao próximo ao ajudá-lo a suprir as necessidades na adversidade, não importando se ele pertence à família, à fé ou à identidade étnica.

Parte II - O Papel do Estado (Vide: Rm 13:1-10)
Existem muitos conservadores norte-americanos, entre eles os influenciados pela tradição da filosofia da lei natural da Igreja Católica Romana, que acreditam que, no final, a posição conservadora baseia-se em fundamentos teológicos.3 Para essas pessoas, as capacidades humanas concedidas por Deus são exercidas nos ofícios de governo e é a partir dessas capacidades que surge uma ordem civil livre e regida por lei. Nessa perspectiva, as características fundamentais da ordem democrática ocidental são ordenadas por Deus: a propriedade privada e a troca voluntária; a responsabilidade e os direitos e deveres que dela emergem; instituições autônomas pelas quais o Espírito Santo opera entre nós e a partir das quais aprendemos os caminhos para a paz. A ênfase conservadora nas associações sem propósitos também tem o seu alicerce ideológico: pois é pela renúncia à vontade individual no trabalho da comunidade que aprendemos a humildade e o amor pelo próximo.
(...)

Parte III - Família
"tendo os olhos cheios de adultério e insaciáveis no pecar; engodando as almas inconstantes, tendo um coração exercitado na ganância, filhos de maldição;" (2 Pedro 2:14).

À medida que a religião se retira da vida pública, a educação moral torna-se, cada vez mais, uma preocupação da família, que é a base e a fonte dos vínculos afetivos fundamentais. A família foi considerada por todos, de St. Just a Lenin, como inimiga dos projetos revolucionários. Marx e Engels dedicaram um livro à destruição da "Família Sagrada", que viam como a excrescência ideológica da propriedade e da exploração. Os ataques contra a "família burguesa" eram a especialidade dos radicais dos anos de 1960 e foram retomados, mais recentemente, pelas feministas. Toda a ideia de normas sexuais e reprodutivas foi repudiada como ofensiva pelos defensores de um estilo de vida aberto e, é justo dizer que, como instituição, a família antiga, formada por pai e mãe, está cada vez mais sob ameaça, já que as pessoas tentam encontrar novas formas de viver juntas e outras maneiras de educar os filhos.
(...) Podem surgir novas formas de associação familiar, antigas configurações podem entrar em decadência, mas ainda permanece a verdade basilar de que a família é o lugar em que os propósitos da vida são erigidos e desfrutados. Isso fornece a nossa primeira imagem de lar, o lugar que almejamos redescobrir um dia (se as coisas derem certo), o tesouro de sentir que estamos novamente desimpedidos para os filhos. Por essa razão, em uma sociedade secular, os conservadores tendem a ficar mais preocupados com a família e com o seu destino do que com a religião, muito embora reconheçam que ambos são interligados e, em alguma medida, continuam sendo. E isso conduz a certo paradoxo. (...)
O direito de família nasceu do desejo de proteger uma forma específica de vida doméstica baseada na união vitalícia entre um homem e uma mulher. Entretanto, uma vez que o Estado se envolveu na tarefa de promover os laços entre as pessoas, também agiu de igual maneira, se não maior, para desfazê-los em resposta aos reformadores radicais. Nossas leis contra o incesto, bigamia e casamento infantil refletem a crença de que o casamento, da maneira como é definido pelo Estado, deve ser julgado de acordo com um padrão mais elevado. No entanto, quando o casamento é reformulado como um contrato entre parceiros, em que as futuras gerações não têm voz, tais leis perdem a razão de ser. Consequentemente, por uma série de mudanças quase imperceptíveis, ao facilitar cada vez mais a obtenção do divórcio, e a negligência cada vez mais flagrante em relação às crianças, o Estado passa a supervisionar o desfazimento gradual dos votos de casamento (...)
A sociedade ocidental evoluiu em matéria de relações homossexuais, aceitando esse modo de vida e o direito do Estado de endossá-lo por meio da união civil. Porém, o elo entre marido e mulher, como o que existe entre pai e filho, tem uma natureza moral que não deve ser resumida a um acordo voluntário. Os conservadores identificam-se principalmente com o antigo rito de passagem e se perguntam qual o propósito do Estado ao ignorá-lo sem claro mandado para fazê-lo. (...)
Todavia, se nos perguntarmos como foi que a defesa do casamento gay se tornou uma ortodoxia aceita por muitos de nossos líderes políticos, devemos certamente reconhecer que a intimidação teve certo papel nessa questão. Por menor que seja a hesitação a esse respeito, alguém nos acusará de "homofobia", ao passo que outros se organizarão para garantir que, mesmo que não se saiba mais nada a respeito de nossas opiniões, esta, pelo menos, será desacreditada. Só quem não tem nada a perder pode aventurar-se a discutir o assunto com o devido grau de prudência que este exige, e os políticos não figuram nesse grupo. Contudo, os conservadores reconhecerão que a consciência comum não ficará inteiramente à vontade com uma mudança que arruína as normas sociais nas quais as pessoas confiaram ao longo de toda a história de que se tem registro. Nisso, e em tantas outras coisas, pessoas de temperamento conservador olham ao redor em busca de outras que falem por elas e encontram somente um silêncio constrangedor. (...)
(...) Em nossa sociedade secular, o Estado assume forçosamente muitas das funções da religião. (...) Em toda sociedade que conhecemos, o casamento foi visto como um vínculo entre homem e mulher que interessava a toda a comunidade. O casamento é como as famílias se iniciam, e as obrigações assumidas pelos parceiros vão muito além de qualquer contrato entre as partes, ao incluir os que ainda não nasceram e que dependem do laço fundamental entre os pais. Era assim no direito romano, que considerava o casamento um vínculo civil, mas que não tinha relação com o contrato de coabitação. Como deixa claro o nome em latim —matrimonium —, o arranjo não significava amor sexual, mas maternidade. Marido e mulher não estavam simplesmente se comprometendo a construir uma vida juntos: estavam embarcando em uma transição existencial, de um estado de ser para outro, no qual o futuro filho seria o elemento mais importante. Essa ideia definiu a posição social da instituição, independentemente do fato de que poderia haver casamentos sem filhos e entre pessoas que passaram da idade de tê-los.
Igualmente nas sociedades tribais, as pessoas atingem uma nova posição por meio do casamento. Toda a tribo se envolve na confirmação do vínculo entre marido e mulher e o casamento é um reconhecimento cerimonial de que os parceiros estão se dedicando não apenas um ao outro, mas à descendência dessa união e ao futuro da tribo. (...)
(...)  Mesmo para nós, o casamento é o principal modo pelo qual o capital social é transferido de uma geração para outra. Mesmo para nós, ter filhos e preparar-se para a vida familiar estão no âmago do laço conjugal. (...)
Isso não significa que somente as pessoas férteis deveriam se casar ou que não poderia haver casamentos que não terminassem em divórcio. Significa que o casamento é construído em torno de uma norma (...). Removamos tal norma e a instituição desestruturar-se-á, como uma tenda da qual se retira o mastro central. Não será mais um vínculo de gerações que tem a criação dos filhos como objetivo, mas um contrato de coabitação, tão temporário e anulável quanto qualquer outro acordo.
Muitos responderão dizendo que não há como voltar às normas maritais das gerações anteriores. Cada vez mais as pessoas vivem sozinhas ou passam de uma relação temporária para outra e evitam ter filhos por considerar o custo inaceitável. Muitos homens não consideram mais a existência de filhos como a razão para manter um casamento que perdeu o encanto. Afinal, o Estado aí está para fazer a vida voltar ao normal. (...) desde que o Estado assumiu o direito de criá-lo, foi uma história de ruptura. A solução correta, parece-me, não é tentar pôr o Estado em outra direção de modo a transformá-lo no guardião dos negócios domésticos, pois isso seria atribuir uma função muito importante: o Estado teria o direito de organizar a sociedade civil segundo os próprios preceitos. A solução correta é dar o exemplo ao viver de outra maneira e ao reconhecer a verdade espiritual fundamental, de que o casamento é um compromisso firmado pelos votos dos parceiros e não pelo carimbo de um cartório.
(...) o Estado existe para proteger a sociedade civil, não para moldá-la (...) Se o Estado tem um papel aqui, este é o de desobstruir e proteger o espaço em que esse tipo de união pode acontecer.
Religião e família são duas esferas de valor. A primeira, contudo, é cada vez mais secundária nas vidas das pessoas urbanas modernas e a segunda está começando a perder sua posição privilegiada como o espaço em que devem ser encontradas a paz e a realização. Para muitas pessoas hoje em dia, o trabalho e o lazer definem os campos primários de associação. E são nesses dois campos que nossas visões políticas são testadas de forma mais séria. (...)

Parte IV - Educação
(...) Segundo, testemunhamos a desqualificação das sociedades modernas na saída dos assuntos técnicos do âmbito escolar e uma tendência geral do sistema educacional para o incerto e para a aspiração. Uma pesquisa sobre a escola infantil, realizada na década de 1980, mostrou que as escolhas prioritárias de carreira profissional eram o magistério, as finanças e a medicina. Parece que as crianças visavam a ser socialmente úteis e respeitadas. Uma pesquisa similar, encomendada pelo canal Watch da Sky Television em 2008, revelou que as escolhas profissionais mais desejadas eram ser astro do esporte, astro da música pop e ator: carreiras que chegam por algum giro imprevisível da roda da fortuna e que chamam a atenção pública para a pessoa que as busca, sem que a torne, necessariamente, útil ou respeitável aos olhos de todos.6 (...)
A desqualificação da sociedade surgiu em parte porque o sistema educacional mudou em razão da oferta, e não da demanda por produtos. O crescimento dos cursos de má qualidade e da especialização de araque foi ampliado pela disponibilidade do financiamento estatal para aqueles que reivindicavam uma paga no processo educacional. As vítimas são os estudantes, seduzidos pelo pensamento de que um diploma em Comunicação Social era o caminho para conseguir trabalho na imprensa ou que um certificado em "Estudos sobre a Paz" era uma maneira de consertar o mundo. Há grande necessidade, em todo o mundo ocidental, de um sistema mais livre de educação superior que ofereça, aos estudantes, qualificações que lhes serão úteis e professores que tenham de provar os próprios conhecimentos. As faculdades norte-americanas de artes liberais são um exemplo dessa conexão e há sinais de que os europeus estão dispostos a considerar a criação de instituições semelhantes, fora do controle do Estado e dependentes apenas do financiamento dos que estão dispostos a adquirir o produto. (...)

Parte V - Amizades
(...) Antigamente, nas condições normais de contato humano, as pessoas tornavam-se amigas por estar na presença umas das outras, por compreender todos os sinais sutis, verbais e corporais pelos quais o outro dá testemunho de seu caráter, emoções e intenções, e por construir, conjuntamente, afeição e confiança. A atenção estava voltada ao rosto, às palavras e aos gestos do outro. E a natureza de indivíduo corporificado era o foco dos sentimentos de amizade que ele ou ela inspiravam. (...)  Exatamente porque a atenção está voltada para o outro é que existe uma oportunidade para o autoconhecimento e para a autodescoberta, para essa expansão de liberdade diante do outro que é uma das alegrias da vida humana. O objeto dos sentimentos de amizade remete à pessoa do outro e responde, gratuitamente, à sua atividade livre, ampliando a consciência do outro e a própria. Em suma, a amizade, na concepção tradicional, era uma rota para o autoconhecimento.
Quando a atenção está voltada para uma tela, porém, há uma nítida mudança de ênfase. O dedo está no botão. A qualquer momento, podemos desligar a imagem ou passar para um novo encontro. O outro é livre no próprio espaço, mas não é realmente livre no nosso, pois depende inteiramente de nossa decisão de mantê-lo lá. (...) desfrutamos de um poder cuja verdadeira consciência a própria pessoa não possui — pois não tem conhecimento da extensão de nosso desejo de mantê-la presente perante nós no espaço.(...)
(...) interação mútua é o que nos eleva da condição animal para a condição pessoal, permitindo-nos assumir a responsabilidade por nossas vidas e atos, avaliar as finalidades e o caráter, e compreender tanto a natureza da realização pessoal quanto desejá-la e planejá-la. (...)
Somos seres racionais dotados tanto de raciocínio prático quanto teórico. E o nosso raciocínio prático se desenvolve pelo confronto com o risco e com a incerteza. Enquanto mantivermos uma postura passiva, a vida na tela está imune aos riscos: não corremos risco iminente à integridade física, ao constrangimento emocional ou a ter responsabilidade para com outros quando clicamos para entrar em algum site novo. (...)
Evitar os riscos nas relações humanas significa evitar a responsabilidade, recusar ser julgado aos olhos do outro, negar estar face a face com outra pessoa, não querer doar-se em nenhuma medida a ele ou a ela ou se expor ao risco de rejeição. Responsabilidade não é algo que devemos evitar; é algo que devemos aprender. Sem ela, nunca conseguiremos adquirir a capacidade de amar ou a virtude da justiça. As demais pessoas continuarão a ser, para nós, apenas mecanismos complexos a serem negociados como fazemos com os animais, em benefício próprio e sem abrir a possibilidade para uma decisão mútua. Justiça é a capacidade de ver o outro ter um direito sobre nós, ser tão livre quanto o somos, e demandando nossa responsabilidade. Para adquirir tal virtude temos de aprender o hábito dos encontros face a face, em que pedimos o consentimento e a cooperação do outro, em vez de impormos a nossa vontade.
(...) Parece-me claro que o que está cada vez mais em risco é a criação de vínculos e a causa é, precisamente, o prazer sexual vir sem justiça ou compromisso.

Parte VI - Cultura
"Quando eu era menino, pensava como menino; mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino." (1 Corintios 13:11).

(...) Uma cultura é uma maneira de transmitir, de geração para geração, o hábito do juízo. Esse hábito de julgamento é vital para o desenvolvimento moral e é o fundamento dos ritos de passagem pelos quais os jovens deixam a fase de adolescência e assumem obrigações na vida adulta. Por isso, uma sociedade sadia requer uma cultura sadia (...).
(...) É verdade que os juízos a respeito de objetos estéticos e obras de arte são subjetivos, visto resultarem de experiência, impressões e gostos pessoais. Isso, todavia, não quer dizer que são subjetivos, no sentido de não admitirem argumentos a favor ou de não se relacionarem a experiências e emoções importantes que podem ser testadas pela vida.
(...) nas palavras de Wallace Stevens, "Que parecer termine em ser somente".i (...) No momento da beleza encontramos significado na forma imediata e sensorial: somos endossados e corroborados por estarmos aqui, agora, e vivos.
(...) E a alta cultura visa, ou deveria visar, a preservar e intensificar experiências do segundo tipo, em que a vida humana é elevada a um nível superior — o nível da reflexão ética.
(...)
Uma vez que os críticos e a cultura, de modo geral, estavam sem causa, a busca pela beleza era cada vez mais empurrada para as margens da iniciativa artística. Atributos como subversão e imoralidade, que anteriormente significavam fracasso estético, tornaram-se sinais de sucesso; ao passo que a busca pela beleza passou a ser considerada um afastamento da verdadeira tarefa da criação artística que é desafiar a ortodoxia e se libertar das restrições convencionais. (...)

 
Fonte: Como ser um conservador [recurso eletrônico] / Roger Scruton; tradução Bruno Garschagen; Márcia Xavier de Brito. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Record, 2015.

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